História - para os meninos do curso de arte na história, com meus agradecimentos e amor.
História é o que acontece sem que a gente perceba, até que num dia numa aula a professora avisa que semana-que-vem faremos prova sobre a civilização tal. História é o que acontece na primeira página do jornal, na votação dos senadores, na decisão do juiz, e quando a mulher negra no sul dos Estados Unidos dos anos 50, sozinha e indefesa, recusou-se a sentar na área reservada para ela num ônibus, isso foi história também. História é o que acontece quando você cuida de mim. É o que acontece quando eu cuido de você. História é o café com leite na caneca amarela e a gata laranja e gorducha deitada aos meus pés, sem perceber que não é um cachorro. História é negar até o fim, é chamar o amado marido de Amado Marido, é renovar o passaporte, dar um mortal de costas, é duvidar, é aceitar o que não podemos mudar, é passear de carro por ruas com nomes deliciosos como Berlioz e Racine e Passo da Pátria, é beber água gelada na Casa London, é perder um amigo sem saber o porque, é herdar um império, é contornar uma revolução, é chorar na frente do espelho sentindo a sua falta. Aprender a usar o fogo para cozer os alimentos é história, chorar de dor e impotência também é. História é nosso medo do escuro, são as florestas pegando fogo e sua mão sobre a minha no meio do filme. História é acordar com um telefonema dizendo que a amiga morreu e não acreditar. E história é acreditar no telefonema. História é inaugurar Brasília, é casar e ter filhos, é deixar a barba crescer. História é descobrir que sua irmã tem um polvo tatuado num lugar indizível, é comer arroz doce na tigela, é perder a Rússia e quase perder um pé, graças ao inverno de 1812. História é comer a melhor geléia de laranja do mundo, é ganhar o Egito quando os generais desmembram o reino do rei morto, é can't help falling in love with you. Fincar a bandeira é história, atravessar os Alpes com elefantes, também. História é pintar as unhas de vermelho e atravessar oceanos cheios de sereias e monstros, sem nenhuma laranja. História são as armas e os barões assinalados. História é amar tchitchia Héuga acima de todas as coisas, é chamar Esabéw de péssima e fazer planos para o casamento da Sofofa. História é a rainha parir em púbico, é gostar de você e odiar ao mesmo tempo, é comprar uma passagem para a Europa, é comer miojo com requeijão. História é o que acontece com os outros, é o que acontece com você e comigo também, todos os dias. História é esperar o moço do guincho chorando sentada no capô do carro, é ver a guerra na televisão, é cair na escada rolante e chorar, não de dor, mas de humilhação. História é não fazer prisioneiros, é montar o consultório em casa, é pagar a promissória no banco, é decidir se os reféns vão ou não ser liberados, é planejar a invasão da Normandia. História é sobreviver contra todas as expectativas, as suas inclusive. História é passear na cidade favorita do Alexandre. História é comer peixe às sextas-feiras, é poder dizer que não se acredita em deus sem ir para a cadeia, é sorrir para a multidão e acenar como uma miss. É passar seis horas com você no café, como se não houvesse um mundo rugindo lá fora. História é quando uma colônia fenícia passa a ser a âncora de seu próprio império, uma das maiores potências navais e comerciais da Antiguidade, fundando suas próprias colônias e portos comerciais. Desempacotar livros e se desesperar com gavetas que não existem é fazer história sim, como não? História é um telefonema secreto de madrugada, é encontrar lugar para um velho gato numa nova casa, é tomar vacina, é sentir saudade, muita, muita. Criar cavalos e cães em Caxambu com as melhores pessoas do planeta, é história. História é quando a Mana mora em Belém. História é perder a cabeça na guilhotina, é demitir ministros, é passar as tropas em revista, é alargar as fronteiras, é vencer, é perder, é sitiar Viena, é descobrir o café na África. História é morrer alegremente pelo general. Ter cabelos toinhoinhoim e um lado totalmente Tchaquinóris é história pura. História é sermos examinados pelo médico de Saladino quando estamos tendo ataques de malária, é perder a Inglaterra, é ganhar a Inglaterra. História é ver todo mundo que você ama indo embora e não poder fazer nada sobre isso. História é ter certezas enormes, verdades de tamanho médio e medos pequenininhos. História é quando suas flores preferidas são copos de leite e você procura palavras no dicionário e se sente tão pequeno, tão pequeno. Passar manteiga no pão, é história e tacar açúcar no toddy morno também é. História é quando o amor da gente mora em Milão, é ter o coração partido de todas as formas possíveis e não poder mais. História é ser o filho adotivo de Trajano, é entender que o Império não pode crescer mais e construir um muro, é listar mais de quatorze mil usos para o sal. História é entender que os bárbaros queriam ser romanos e não destruir Roma. História é abrir mão do que mais se ama, é lutar pelo que mais se ama, é conhecer o que mais se ama. História é ter aprendido a ser grego com Alexandre, o Grande, filho de Felipe II e não ser nada além disso há quase três mil anos. Perder dois bebês, situações diferentes, a mesma dor, é história. História é saber quem foi Panoramix. História é entender que Roma está mais perto de nós no tempo do que qualquer outra grande civilização antiga, que falamos um filhote de seu idioma, comemos o que eles comiam, aplicamos suas leis, nos batizamos com seus nomes, andamos por suas estradas, que temos a mesma pressa, a mesma ferocidade imperialista, a mesma falta de respeito por qualquer cultura que não seja a nossa, a mesma aristocracia decadente, a mesma fome de vida – a nossa e a dos outros. História é buscar respostas num curso on line, é fazer novos amigos, é ter uma roupinha de ver deus no armário, é casar em Lages com pompa e circunstância, é ter cabelo de boneca, é pegar um avião lá em Brasília só pra ver tevê com a amiga em São Paulo, enquanto ela chora, com Baco sentado em seu peito. História é gravar um cedê do Sidney Magal para a amiga que não está muito feliz, é aprender uma velha canção. História é ter um amigo que vai a Portugal como quem muda de roupa, outro que liga de Seatlle para encomendar sambas e outro que faz interurbanos de lugares tão deliciosos quanto a Malásia ou as Ilhas Maurício, para contar sobre o arranjo de flores da mesa do café da manhã. Temer o invisível, acreditar em forças ocultas e em lendas de meninos criados como lobinhos? História é nunca acordar o gigante adormecido. História. Mudar com furões para o meio do mato também é. Várias histórias, pequenas e grandes, importantes e medíocres, engraçadas e trágicas, tiveram que atuar juntas para que nós pudéssemos estar aqui, fazendo história também e enchendo a cara sempre que possível, porque ninguém é de ferro. História é quando seu amor mora em Campinas e você não, é quando você põe uma roupa bonita para beijocar a moça mais bonita ainda que a roupa e que está de aniversário, é comprar um apartamento duplex com vista para o mar no condomínio Carlasan Towers, é prender bandidos no Ceará, é carimbar passaportes no Amazonas, é abraçar a moça de óculos no café da manhã das estrelas, é apaixonar-se à primeira vista pela moça de cabelo escuro. História é construir a ponte, é queimar a ponte, é quando seu irmão mora tão longe, tão longe, é cercar o castelo, é comer açorda de gambas num boteco na Alfama, é fotografar o gatinho que dorme, é renunciar à coroa, é trair um juramento, é trancar os desafetos na Torre de Londes, é deter um exército, é entender que nem sempre o X marca o lugar. História é a espera, o monstruoso, o divino, o que depende de nós e o que escapa ao nosso alcance, o que nos emociona e o que nos faz berrar de ódio, outra dose de vodca, outra música, mais uma fatia. História é perder seus sonhos, suas certezas, sua família, a fé que depositaram em você, sua pátria, suas chances, as vidas de vários companheiros, a sua própria vida, o legado de seu pai, é trair a própria biografia, é perder não um, mas dois impérios: Cartago – o império donde se veio, e Roma – o império que nunca se teve. Quase sempre, alias, história é perder tudo, tudo, tudo. É história o que nos faz chorar sentados no box, a água morna do chuveiro, a luz que não se faz, o final que não chega, alívio nenhum.
Nenhum comentário:
Postar um comentário