sábado, 13 de maio de 2006

de conversa em conversa, a gente chega lá

rio de janeiro, fragmentos de uma vida















'dois irmãos, quando vai alta a madrugada...'


duas da manhã. a cidade dorme. chamo raílsson, o zelador de meu antigo prédio. grito o nome pelas grades do portão. carro estacionado, portas abertas, chave na ignição, faróis acesos. acho que sempre vivi num rio de janeiro que não acreditam existir. chamo uma, duas vezes. viro as costas certa de não encontrá-lo. “não acredito no que meus olhos vêem”. nem eu, repliquei. lá estava o moço subindo a rampa do estacionamento. cabelo levemente atrapalhado, bermuda florida, camiseta regata e “as legítimas” no pé. “que tá fazendo por aqui?”, perguntou feliz da vida. “vim ver um show de uma amiga, e passei aqui para uma caminhada na praia. com você, sei que não corro perigo, topa?”. raílsson não tinha muito mais tamanho que eu, o que se resume dizer que nada ali passava de 1,62. mas com ele, sentia-me mesmo segura. não sei se pela carinha sempre disposta e risonha (quem não xingaria ser acordado no meio da noite por uma lunática no portão?) ou se pelas histórias que vez e outra ele soltava, mas tornaram-se lendárias aquelas caminhadas. da rua aristides espínola, ponto 11,5 do leblon, até o arpoador. no calçadão, poucas pessoas em frente aos quiosques mal iluminados da orla. orla. bonita essa palavra, não? carioca quase nem usa, mas eu adoro dizer: orla.

na borda da orla
a maré sem nome
sem peixe
faca, peixeira, escuridão
risca palmeira de árvore
moleque sem sobrenome
paradeiro
destino na palma da mão
um sopro um samba
sola na sola do asfalto
cama, travesseiro não há
lençol, virol ou colchão

sei lá porquê raios, mas isso me lembrou de uma cena que nunca saiu da minha mente. nove horas da noite. visconde de pirajá em direção à ataulfo paiva. um vigia de uma galeria sai de um orelhão. uma mendiga corta meu passo, afunda a cabeça no mesmo orelhão e passa o nariz em sua tampa. gelei no primeiro instante. entristeci no segundo momento, quando a “ficha” caiu. cocaína na certa. voltei pra casa me sentindo menos gente, menos humana, menos. com a cena deprimente à minha frente.

e como pensamento é feito marola, vai e vém, cá estou de novo a caminhar com raílsson. pouco verbo, pouca palavra. lembro da vaidade que ele sentia de andar ao meu lado, e embora sem muito entender, me fazia bem. havia quem achasse que ele era apaixonado por mim. ou eu por ele, sei lá. carioca quando dá pra inventar, ô mente fértil. não era nada disso. o que existia era, sim, uma grande afinidade na simplicidade. enquanto as "madames" do leblon empinavam o nariz, eu sorria daquilo tudo. e ouvia as histórias do sertão. ora ele falava da família que morava em natal, e de como seria bom voltar a viver no ceará, se por lá conseguisse emprego digno. ora ele falava da vida no rio... ele tinha uma moto que impressionava as meninas que dançavam com ele aos fins de semana. uma, duas, três namoradas, nem sei. e morava num quarto na garagem do prédio. descobri isso quando já nem vivia por lá. estarreci. que dignidade era aquela que ele falava não ter no nordeste?

aliás, que garagem mais doida era aquela do leblon. parar o carro significava apertar o controle do portão, que lento, entraria um arrastão inteiro se quisesse. descia a rampa e vinha a labuta, academia gratuíta. parava o carro para empurrar outros atravessados no caminho. estacionava. e voltava a empurrar os outros que ficavam sempre com freio de mão abaixados. achava aquilo tudo no mínimo antropológico. quem era bobo de pagar novecentas pilas de aluguel para ter que empurrar carros de vizinhos todos os dias para poder guardar o seu? ai. eu fui. por poucos meses, aos fins de semana, mas eu fui. como outras coisas, esse foi um lance que descobri depois de acertar contrato. outra faceta de morar por ali era a sensação de que as paredes tinham sido feitas de areia. sérgio naya teria passado por lá? havia um casal que brigava horrorosamente todos os dias, e mesmo com o som ligado, ouvia parte das intempéries... e as ameaças constantes de espancamento à criança do casal que inevitavelmente chorava, berrava, soluçava. isso pra não falar em outras coisas... no vizinho da frente, um rapaz por volta de 30 anos que escarrava a qualquer parte do dia... era possível ouvir da sala. também o violão desafinado do vizinho e mais outro ar condicionado de pirar a batata de tão barulhento. o leblon tinha coisas engraçadas. e raras de se contar. caminhando por ali, descobri coisas que nem imaginam. pessoas que nem se conheciam alugavam um mesmo apartamento apenas para ter o prazer de dizer que moravam no leblon. “questão de status”, explicou-me uma vez seu garcia, o senhor que vendia apetrechos para o lar numa loja de esquina. luxo. haha. realmente, que luxo....

ah, mas eu gostava. como gostava dali. das luzes do diagonal, da pizzaria guanabara, do hotel marina ao fim do dia. levava tudo com muito humor. e caminhava toda noite, sozinha. sempre sozinha. sem saber, no começo, que raílsson me seguia quando coincidia com o turno dele. parece mentira, mas achava apenas coincidência encontrá-lo na hora em que voltava. depois, quando descobri (porque ele me contou), percebi o quanto eu era patza. whatever. para mim, o cheiro de maresia e o barulho do mar bastavam a vida e os pensamentos que, de tantos, já nem sabia. às vezes, acendia um cigarro... e, confesso, entornava umas duas latas de cervejas. qualquer marca, desde que geladíssimas. há muito não fumo. nem bebo, cerveja. prefiro uísque ou um teco de uma boa cachaça, vez em quando, vez em nunca. vez em quando... é bom sentir que a alma vai deixar o corpo, e o corpo, veja, não jaz. só jazz.

um dia, soube que raílsson mudou. não sei se por agrado ou necessidade, voltou pra perto da família. nunca mais tive notícias. e assim como ele, outros amigos do rio se foram... alguns, para sempre. mas com música, com prosa, com esculturas de areia para turista ver e pagar, o rio segue, a vida ergue e o pintassilgo repousa no ombro do marinheiro à beira-mar do mar de angra, do outro canto do rio. ah, rio... lembranças que não acabam mais. amigos bons, únicos e verdadeiros. histórias de vida a fazer chorar, sorrir, emocionar, vibrar, enlouquecer, gargalhar. e tudo aqui em retalhos, digo, porque a memória anda aflorada por conta de um lugar — imperdível — que me fisgou, encantou e me apaixonou. de bar em bar, a gente chega lá! vem...

2 comentários:

dade amorim disse...

tou voltando meio zumbi, depois de um longo e tenebroso - e não é que tu tá no papo de botequim? que legal. bom fim de semana, anika.

li stoducto disse...

e aí, moça? te chamei pra participar.
não recebeu não?

beijos