quarta-feira, 6 de junho de 2007

II

A cada cilada que entra, pergunta se a armadilha foi ela quem criou ou é mesmo obra do acaso, destino, Divino. Ama. É tudo que sabe. Diz que ama, mas de tanto dizer, na verdade, não sabe se é amor que sente ou algo próximo do convencimento. Com vencimento de amar. Porque a maioria tenta se convencer o tempo todo. Ora porque se é legal e por isso deve estar rodeada de muitos amigos. E se não forem muitos, não vale. Ora porque se é inteligente, simpática, risonha, engraçada. Gente de verdade. Daquelas pessoinhas que enchem a boca para dizer o quanto “gostamos de você”. Plural, claro. Sempre no plural. Gente assim pode até ser singular, mas aparece sempre no plural. Anoiteceu na minha garganta / Um mistério afogado frente à luz / Frente ao estado / Frente à cara do guri / Dei mais dois pra não sorrir / Esse filme eu já vi / Dei mais dois pra conhecer a vida / Esse filme eu não vi*. Então canta-se, mesmo sem o menor dom ou encanto. Vocifera-se palavras em uma melodia dissonada. Dissonada de dissonante, não de sonada, mesmo. Inventar palavras e expressões é uma brincadeira da qual gosta muito. Das xulas às eruditas. Das eróticas às polidas. Antíteses de uma vida regrada em extremos. Ora muito feliz. Ora em uma tristeza insondável, de dar inveja ao medo, tamanha profundidade e rigidez. Mas ela se sente vazia boa parte do tempo. Braços flácidos lapidados em honrosa preguiça muscular. Dia que se confunde com a noite. Aquela coisa sem freio, onde todo lugar é paradeiro. O se diz tudo e o se diz nada. Isso. Juntar várias palavras como que construindo um argumento fortíssimo, quando espremido se revela “tipo assim... enfim”, e a pessoa faz cara de conteúdo, sem nada ter dito, ter feito. De nada ser. Gota de orvalho no botão. Da camisa cor-de-rosa que lembra a pantera. Felino, vaca, bicho qualquer. Desenho animado onde tudo vale. Se morre, mais vive. Se vive, há de morrer engraçada, danada, lambuzada e merecida. Música orquestrada ou sonoplastia pura. Garfos com afiados caninos esperando feito cobra pra dar bote. No mar se revela. Fotolito, desnuda. Se resvala. Permite ao infinito uma chance de estar com ela mesma. Pernalonga, além. Cenoura que nunca acaba. Permite algumas coisas mais: um instante de ser ela mesma. Permite sem vergonha sentir-se pequena diante de tudo o mais. Surta na calma e no mistério de ser. Beleza exótica, entranha, seres estranhos - as pessoas do mundo. “Petulantes, burros, presunçosos, ainda que mágicos, surpreendentes existencialistas”. Ora, experimentam a vida sempre arriscados a nada ser. A nada digno, produzir. E se afunda nessa colocação. Anciã de uma terra perdida, na sensação de ter passado pela vida sem nada ter feito de útil ou colaborado para ou com as pessoas. Hoje se fecha. E grita calada. De nada adianta, parece. Apresse. Enquanto pensa a vida esvai. A prece. Gota na janela pronta para o suicídio. Ela morre não sabe quantas vezes ao dia. Talvez por isso a morte em si não a assuste mais. Ou muito. Ou nada. Pensa ter paz. Ligada a mil volts, gasta mais energia que consume, produz pouco. Bem menos do que gostaria ou poderia. Produz muito. Bem mais do que desejaria ou poderia. “Poder, se pode tudo. Não dizem que poder é querer? O contrário. Querer é coisa outra”. Ama, e tudo que sabe é que ama. Do resto, se a amam, se gostam dela – de fato, se a valorizam ou a desejam, não sabe. Ora, é claro que sim. Ora, se sente de lado, objeto rasgado, carro desgovernado. “Andar nas ruas é cada vez mais difícil e complicado. Gasolina que não pára de subir. Motos, invisíveis sob duas rodas, buzinam alucinadamente como se assim fosse possível dar passagem ou não fechá-las”. Tranca a porta. E o quadro de Gogh (seu íntimo, o Van) a dopa em seus girassóis. Chá de semente, travesseiro que deita na mente que não descansa. Avança. Dias assim sabe o quanto pesam e exigem que seja forte. “Não esmoreça”, diz a ela mesma. Sem muito valer. Sem muito e muito amar. Finge alegria. Cria personagens numa ribalta que sonhou, mas se vocação foi lhe dada, talento não tem. Ou o inverso. Ou tem e o culpado é o piruá que não estourou. “Humilho”. A pipoca não vem. Alegria estanca a perna que sangra. E a lança sabe Deus onde. O sol não veio, mas é claro o dia. Destila poesia para curar a ressaca. Da vida. Passa o dia. Chega noite que tanto chama. Madrugada faz orvalho para a lágrima que canta, ensaia, mas também não vem. Gosto da morte na boca o tempo inteiro. Da criança que diz bom dia. Bom dia. Bom dia. Bom dia. É o bonde com seus apitos longe, longe, d’uma estação que não tem. Passageiro imaginário, locomotiva desse trem.


* Esse Filme Eu Já Vi (Luiz Melodia / Renato Piau)

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